terça-feira, 17 de agosto de 2010

Candeia: há 75 anos nascia um mestre

Por Julio Cesar de Barros - 17/08/2010

Antonio Candeia Filho nasceu no dia 17 de agosto de 1935 e morreu no dia 16 de novembro de 1978 na cidade do Rio de Janeiro. Filho de um tipógrafo que tocava flauta, o menino Candeia cresceu no meio de músicos, nas festas que seu pai promovia ao som do choro e do samba. Jovem dinâmico, Candeia tocava violão e cavaquinho, jogava capoeira e frequentava terreiros de candomblé. Vítima de uma fatalidade, foi parar numa cadeira de rodas, seguiu em frente e se tornou mentor e mito entre os sambistas. Compôs em 1953, aos 17 anos, seu primeiro samba-enredo, Seis Datas Magnas, com Altair Marinho, o Prego, levando a Portela ao título com notas dez em todos os quesitos. Foi a primeira de seis vitórias no concurso interno de samba-enredo da escola. Compôs também Festas Juninas em Fevereiro (com o irmão Valdir 59), de 1955, classificando a escola em terceiro lugar no desfile. Em 1957, o samba-enredo Legados de D. João VI (também com o irmão), levou a escola a novo título.

Voltou a vencer em 1959 com Brasil, Panteão de Glórias (com Casquinha, Bubu, Valdir 59 e Picolino) e a Portela obteve mais um título no carnaval carioca. No ano do IV Centenário do Rio de Janeiro, o samba Histórias e Tradições do Rio Quatrocentão deu à agremiação de Osvaldo Cruz a terceiro colocação. Seus sambas-enredo, no entanto, não fizeram o mesmo sucesso que seus partidos-altos, cujos refrões são cantados até hoje nos terreiros de samba de norte a sul do país. É o caso de Filosofia do Samba, gravado por Paulinho da Viola:

Vem sambar Iaiá
Vem sambar ioiô
Iaiá, Ioiô

Essas letras animam as rodas em que os cantores improvisam versos, que intercalam com o refrão. Candeia era também um mestre improvisador. Alguns de seus versos improvisados se tornaram tão famosos que foram gravados junto com refrões de terceiros, como se fizessem parte da música original. Seus dotes de partideiro foram imortalizados em três álbuns denominados Partido em 5, lançados entre 1975 e 1977, com a participação de outros quatro sambistas. No início dos anos 60, Candeia dirigiu o conjunto Mensageiros do Samba e participou do movimento de revitalização do samba promovido pelo Centro Popular de Cultura, CPC. Mas o que poderia dar em militância política gorou em 1961, quando ele entrou para a polícia. Foi um policial truculento, que acabou se afastando do convívio dos antigos companheiros. Várias vezes interrompeu rodas de samba por perturbação da ordem pública, estranhando os amigos e sua origem. Contam que certa vez chegou a prender o próprio irmão, Valdir. Certo dia enquadrou o ainda desconhecido Paulinho da Viola, que jogava sinuca num bar. Numa discussão de trânsito, em 1965, desceu do carro e descarregou o revólver contra o motorista de um caminhão, que revidou, acertando-lhe um tiro na coluna vertebral. Candeia ficou paraplégico. A tragédia transformou sua vida. Ou o devolveu às suas origens. Na letra de seus sambas se podem notar os reflexos de seu sofrimento:

Se eu tiver que chorar
Choro cantando
Pra ninguém me ver sofrendo
E dizer que estou pagando

E foi cantando que ele chorou. Mas Candeia ergueu a cabeça e firmou-se como líder entre os grandes sambistas cariocas. Passou a reunir a fina flor do samba em sua casa para memoráveis pagodes de fundo de quintal. O compositor e partideiro estava em plena forma e encantava a todos com bons sambas de melodia rica. Tirá-lo de casa, no entanto, foi tarefa difícil. Em cadeira de rodas, temia que sentissem pena dele. Até que um dia os amigos conseguiram fazê-lo se reencontrar com o público. Foi numa noite, no Teatro Opinião. A casa cheia de amigos e convidados, ele entrou em sua cadeira de rodas e foi cantando um samba novo, De Qualquer Maneira, ao som de um violão:

Sentando em trono de rei
Ou aqui nesta cadeira
Eu já disse, já falei
Que eu canto de qualquer maneira
Quem é bamba não bambeia
Digo com convicção
Enquanto houver sangue nas veias
Empunharei meu violão
De qualquer maneira meu amor eu canto
De qualquer maneira, meu encanto
Eu vou cantar

Poucos conseguiram conter as lágrimas. A peça É sangue na veia, é Candeia, de Eduardo Rieche, vencedora do concurso nacional de dramaturgia promovido pelo CCBB, em 2007, mostrou a cena. Candeia lutou contra a melancolia até o fim da vida, mas ela não o abandonou. Nos versos de Preciso Me Encontrar (gravado por Cartola e mais recentemente por Marisa Monte), a sombra da tragédia pessoal:

Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Quero assistir o sol nascer
Ver as águas do rio correr
Ouvir os pássaros a cantar
Eu quero nascer, quero viver
Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar

Em 1970 lançou seu primeiro LP, Autêntico, Samba, Original, Melodia, Portela, Brasil, Poesia, Candeia e, em 1971, um segundo disco, Seguinte…Raiz Candeia, no qual se destaca Quarto Escuro, de tom romântico e melancólico:

Não acende a luz dentro do quarto
Volto para os teus braços aceso de amor
Deixei lá fora os meus fracassos
Meus lábios contaram-me os segredos
Verdade do amor sem medo

A melancolia e o tom soturno dos sambas líricos de Candeia reaparecem naquele que é apontado como seu melhor disco, Axé, de 1978. Na faixa Pintura Sem Arte, ele chora:

Me sinto igual a uma folha caída
Sou o adeus de quem parte
Para quem a vida é pintura sem arte

Outra faixa desse disco, Amor Não é Brinquedo, pinta com cores fortes velhas cicatrizes:

(…) Se estás procurando distração
O romance terminou mais cedo
Peço por favor
Pra não brincar com meu segredo
Verdadeiro amor não é brinquedo (…)

Aos jovens que o procuravam para mostrar seus sambas, sempre dava conselhos: “Estude, sem estudo você nunca será nada na vida”. Respeitado no morro e no asfalto, Candeia foi um militante negro avesso ao preconceito de mão invertida. Jamais fez distinção entre negros e brancos, que ele sabia estarem igualados na luta pela vida. Aos cultores de africanismos e americanismos ele contrapunha estes versos:

Eu não sou africano
Nem norte-americano
Ao som da cuíca e pandeiro
Sou mais o samba brasileiro

Sem radicalismos, cantou as desigualdades sociais, exaltou o samba e a cultura negra, cultuou os orixás. Mesmo não chamando para si uma missão, virou um mito, líder de uma resistência que se confundia com a oposição à ditadura militar. Mas sua preocupação maior era cultural. Convencido de que a escola de samba era uma “árvore que perdeu a raiz”, deixou a Portela, que julgava descaracterizada, e com um punhado de companheiros fundou, em dezembro de 1975, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, sob a bandeira do “samba autêntico”. Candeia chegou a escrever um livro com suas críticas à forma como as escolas se apresentavam àquela altura e, de modo saudosista, indicando como saída a retomada de tradições antigas, que os sambistas por motivos os mais variados haviam abandonado. Trata-se de Escola de Samba – Árvore que Esqueceu a Raiz, Antônio Candeia Filho e Isnard Araújo, Editora Lidador, 1978. A saga da criação da Quilombo foi mostrada no documentário Eu sou o povo (2008), de Bruno Bacellar, Luiz Fernando Couto e Regina Rocha.

Doce ilusão. Candeia morreu e com ele a escola, que desfilando fora das passarelas oficiais saiu pela última vez em 2003. Um núcleo remanescente ainda realizou até recentemente rodas de samba na sede, na Fazenda Botafogo, em Coelho Neto, bairro da Zona Norte carioca, e movimentou um vagão no Trem do Samba, que todo ano, por ocasião do Dia Nacional do Samba (2 de dezembro), sai da estação da Central até Osvaldo Cruz carregado de sambistas. A face dura e militante e as emboscadas do destino não conseguiram esconder o homem afável, justo e de grande sensibilidade no qual Candeia se transformou. Mais conhecido por seus sambas de partido alto, Candeia deixou uma vasta coleção de sambas líricos, menos conhecidos. Em sua curta existência de 43 anos, ele amou e soube como poucos cantar esse sentimento.

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